quarta-feira, 27 de abril de 2011

Festival Boi-Bumbá de Parintins


500 anos - Boi-Bumbá de Parintins

Carnaval na Floresta AmazónicaUma importação nordestina com raízes em remotas tradições populares portuguesas transforma, no mês de Junho, a Amazónia brasileira na terra do Carnaval. O Bumbá Meu Boi do Maranhão está para o Boi Bumbá de Parintins como o Carnaval da Bahia para o do Rio. Um verdadeiro achamento. 500 anos depois.

I
magine uma ilha no coração da floresta amazónica. Para uns, será a visão de uma espécie de inferno pintado de verde, transbordante de vida animal. Desde a onça vingativa de O Velho que Lia Romances de Amor, do escritor chileno Luís Sepúlveda, passando por répteis e insectos de todas as espécies e feitiços, até às sinistras piranhas, celebrizadas em filmes de série B. O cadastro parece do tamanho do sítio.

Para outros, a Amazónia é o verdadeiro paraíso perdido. O lugar da Terra em que a maior parte da natureza ainda se mantém intocada. O santuário de espécies lendárias como o peixe-boi ou o boto, o golfinho de água doce. A Amazónia não tem meio termo. Acorda terrores ou desperta paixões. Mas o que poucos sabem é que ali existe uma ilha que se transforma, todos os anos, num gigantesco sambódromo, ou melhor bumbódromo, invadida não por mosquitos mas por milhares de brincantes, à semelhança de outros carnavais.

A ilha chama-se Tupinambarana, fica a 400 quilómetros de Manaus e o motivo da festa é o Boi-Bumbá.

Carnaval, como todos sabemos, é mesmo assunto de brasileiro, mas Carnaval na Amazónia é coisa que nem todos os brasileiros conhecem. Em cada ano, na última semana de Junho, Garantido e Caprichoso, protagonizam um duelo que divide o povo entre o boi vermelho e o boi azul, respectivamente. Eles representam os dois bois contrários que, em linguagem carioca para simplificar, correspondem a duas escolas rivais.

Quem já tenha assistido aos carnavais do Rio ou da Bahia e pense ter visto tudo, desengane-se. O Festival do Boi Bumbá está para além do que possa ter experimentado antes.

Nos dias e noites de festa em Parintins, cidade que acolhe os brincantes, manifesta-se uma cultura de fusão entre diferentes influências. Como em nenhuma outra parte. O índio, o branco e o negro foram aqui remisturados para fazer nascer o homem da Amazónia actual: o caboclo.

Mais do que o índio, praticamente remetido ao cartão-postal ou protegido pela FUNAI no território que ainda lhe resta, é o caboclo que representa esta região fundamental para o equilíbrio do planeta. O Festival dos Bois é a maior tentativa de comunicação do povo amazonense com o mundo exterior. Nas suas alegorias e nas letras das toadas (enredos) estão contidas as lendas e a história das tribos ín-dias, mas também os relatos da chegada do homem branco e os grandes dramas e angústias que o caboclo e a Amazónia enfrentam.

Foi graças a uma destas «toadas de intervenção» que o Boi Bumbá se fez escutar para lá da floresta. «Vermelho», toada de homenagem do Boi Garantido ao Sem Terra Chico Mendes, mereceu, inclusivamente, uma versão de Fáfá de Belém com enorme sucesso. Mas não se conclua que a tristeza substituiu o samba pelo fado na terra do Carnaval. O Boi Bumbá é uma festa que nos transporta para um imaginário quase bíblico.

Os mais puritanos, perante a adoração dos bois, pensariam estar de regresso aos dias de Sodoma e Gomorra. As cunhã-porangas (moças bonitas em linguagem indígena) fazem acreditar na lenda das Amazonas e parecem um convite ao pecado original. De repente, tudo bate certo. Este é certamente o Paraíso de onde Adão foi expulso. Eva conseguiu permanecer e multiplicou-se…

Interpretações à parte, segundo a tradição, é precisamente nesta região outrora ocupada pelos índios Parintintins que o mito das mulheres guerreiras tem origem. As pedras verdes de Jade encontradas neste lugar são chamadas de muiraquitãs, ou seja, pedras das Amazonas.

Quanto às origens do Boi Bumbá, somos, no mínimo, surpreendidos. Que a tradição foi importada do Nordeste, do vizinho Bumbá Meu Boi, aceita-se pacificamente. Mas ninguém esperaria que a raiz de todo este ritual esteja presa a remotas tradições populares do Minho. As Tourinhas do Minho, o Boi Canastra ou o Boi Fingido, em que brincantes envergando um pano branco sobre uma estrutura de pau, dançavam e provocavam os foliões amontoados nas ruas. Minhotos e Amazonas. Um cruzamento inesperado.

No Brasil, a preparação de qualquer Carnaval que se preze é feita com uma antecedência digna do estilo alemão. Entre cada Festa do Boi, a trégua não dura, seguramente, mais de dois meses, depois da festa da vitória que consagra o vencedor de regresso a Manaus.

Por volta do mês de Março, já os Currais (locais de ensaio dos Bois) aquecem nas noites de fim-de-semana, com a apresentação das novas coreografias e toadas. Caprichoso, o Boi da «elite», assenta arraiais no Sambódromo. Garantido, o Boi do povão, ensaia no Olímpico. 
No Sambódromo, Arlindo Jr., levantador de toadas do Caprichoso, faz dançar os milhares de pessoas que lotam o recinto, como se fossem um único corpo. Na barricada rival, a voz de David Assayag parece o trovão de um deus da floresta, cantando o orgulho do povo índio contra a opressão dos antigos colonizadores, principalmente espanhóis. O povo amazonense, apesar de afável e generoso, guarda uma crítica muito amarga em relação ao homem branco e à destruição das tribos e das culturas ameríndias.

A toada «Continente Perdido» conta:
«A história começa em um continente perdido/O povo ameríndio era filho do rio e da terra/O grande rio-mar já descia a cordilheira/Civilizações já viviam no meio da selva/As caravelas cruzaram o grande oceano/Colombo então neste solo sagrado pisou/Cabral aportou e achou que era dono da terra/E em nome de Deus e do rei tomou posse do chão/Cortez impiedoso dominou Aztecas/Pizarro destruiu os filhos do sol.»

A ferida ainda aberta não tem repercussão no tratamento dispensado aos forasteiros. Gringos, na gíria local. Os fins-de-semana na Ponta Negra, espécie de docas de Manaus, são pura diversão. Os menos avisados facilmente se deixarão seduzir pelo perfume de orquídea selvagem das cunhã-porangas…

Tudo se encaminha para o dia D: o embarque nas centenas de típicos navios gaiola, que transportarão os brincantes, Rio Solimões abaixo, até à cidade de Parintins. Para conseguir um lugar nestas barcas da felicidade, convém reservar com bastante antecedência. Especialmente os camarotes. A alternativa é uma rede tipicamente brasileira. Depois, encontre um lugar para a pendurar. As redes presas ao tecto do piso intermédio do barco composto por três níveis fazem lembrar dezenas de aranhas partilhando a mesma teia.

Como recurso de desespero para quem só tomou conhecimento do evento depois de chegar a Manaus, tente a sua sorte no Hotel Tropical. A confusão na hora da partida antecipa o ambiente dos próximos dias. A música dispara em todos os sentidos, debitada dos barcos, que, atracados no cais, esperam o momento da saída. A excitação de estar a caminho do acontecimento mais importante do ano dá sentido à vida e faz esquecer todas as amarguras e injustiças do mundo. A partir de agora só existe uma palavra: brincar!

Antes que a noite se apresse largamos, enfim, as amarras do Almirante Araújo. A embarcação não é propriamente um luxo mas a experiência compensa. Ultrapassado o cartaz turístico do Encontro das Águas, em que Rio Amazonas e Rio Solimões correm, lado a lado, sem se misturar, durante oito quilómetros, assumimos decisivamente a navegação pelo último. Um pouco à frente, ainda somos visitados, de surpresa, pela polícia marítima, que, para conforto dos mais cépticos na segurança do navio, faz um controlo rigoroso do número de passageiros a bordo.

Durante a viagem nocturna, a música não pára. Paredes meias com as monstruosas colunas de som que imprimem o balanço da galera, o camarote tamanho 2 por 2 estremece, projectando a cama contra a parede contrária.

Uma luz forte, partindo do tejadilho, ajuda o barco a varrer a noite, tacteando as águas barrentas do Solimões, na procura de algum tronco à deriva e mantendo a uma distância de conveniência os outros companheiros de jornada. No breve instante em que pregamos olho, antes que a manhã nos obrigue a encarar a ressaca, acordo com dificuldade de me desfazer da nítida sensação de estar a ver estrelas através da parede e a ouvir, ao longe, o tema do Titanic.

O amanhecer amazónico vem cedo e não se esquece. Pelas 5.30h já estamos prontos para a loucura de um novo dia ou para a continua-ção do anterior. Ainda que não se tenha dormido, houve um ligeiro efeito de pausa, que serviu para distinguir a noite do dia.

Pelo meio-dia chegaremos a Parintins. As toadas dos Bois não tardam a desatar pelo barco fora. Toneladas de creme são gastas na pele para curtir melhor ao sol. Ao contrário do que seria normal, a solução cremosa não é usada como protecção. O ideal de beleza é chegar a Parintins praticamente «carbonizado». Pela primeira vez na vida, sinto-me embaraçado com a minha cor europeia. Quando argumento que em Portugal sou considerado «moreno», não me levam a sério.


Finalmente, Parintins à vista. Cabral não teria ficado mais feliz. Troco o Monte Pascoal pela visão do Bar do Chapão que domina o cais. O som de terra une-se, feliz, ao do Almirante Araújo. A Toada é geral. Centenas de embarcações descansam em paz, funcionando como hotéis improvisados. A oferta hoteleira da cidade é escassa e não comporta a enxurrada azul e vermelha.

O contacto com terra firme é uma ilusão passageira. Feitas as contas, é duvidoso afirmar quanto tempo os pés aguentam colados ao chão. Dançar parece ser a única maneira que esta gente usa para estar em pé. A euforia colectiva adivinha uma espécie de «últimos dias do mundo». Vive agora, paga depois, é o lema. Nas ruas, não há quem não use um adorno. Penas, colares, pulseiras, tatuagens do Garantido e do Caprichoso… Índio por três dias. À noite, Garantido e Caprichoso desfilam no Bumbódromo. As bancadas são divididas, religiosamente, com metade dos apoiantes para cada lado.

Justiça de Salomão. Cada Boi tem três horas para mostrar os desempenhos coreográficos e levar a multidão ao delírio com as novas toadas. Quando um Boi desfila o outro baixa as orelhas. Cada galera deve permanecer em silêncio quando o contrário se apresenta. A sensação é de arrepiar. Toda a força e magia da celebração explodem na arena e nas bancadas. Não é possível ficar impenetrável, assistindo. Foi o que pensou o operador de uma equipa de televisão, que largou a câmara no chão e dançou durante meia hora, em plena arena.

A batucada acelera-nos o coração. Pagés, Cunhã-Porangas ou Sinhazinhas da Fazenda são o centro de representações alegóricas que rivalizam com as escolas do Rio. Aliás, a atenção do Carnaval mais mediático do planeta já se voltou para o parente amazónico. Joãozinho Trinta, o mais afamado carnavalesco carioca, tem vindo a recrutar coreógrafos e músicos destas paragens.

Se, de repente, ficar desesperado por escutar o som do silêncio pode, durante o dia, fazer curtas explorações pela mata circundante. A época das chuvas terminou há pouco tempo. As águas estão altas, a floresta alagada, mas, mesmo assim, é possível descobrir praias fluviais de areia fina e branca. Desertas. Como nos filmes. Em Parintins é relativamente fácil encontrar alguém que lhe alugue um pequeno barco a motor e que o acompanhe numa incursão pelos igaraés e igapós vizinhos. Tente no Bairro de S. Francisco, para os lados do Curral do Garantido.

O passeio também serve para desmistificar os perigos da floresta. Depois de tomar banho nestas águas mornas de tonalidade âmbar vai perceber que, mediante o devido aconselhamento dos habitantes locais, talvez esteja mais seguro num afluente do Amazonas do que ao volante do seu automóvel na IP 125.

No regresso de Parintins, algo me diz que a experiência não me deixou indiferente. Ao pescoço, trago um colar feito com osso de anaconda, recebido como prova de amizade. No braço, uma pulseira com penas. Na cabeça, o refrão de uma toada: «Garantido até morrer!»
GUIA DE VIAGEMCOMO IR
Não existem voos directos Lisboa-Manaus. Alternativa: a Transbrasil tem voos diários para Manaus, via Rio de Janeiro.


INFORMAÇÕES ÚTEIS
Documentos: passaporte válidoVacinas: nenhuma é obrigatória, mas é aconselhável a passagem por uma consulta do viajante antes de embarcar. A profilaxia da malária, da cólera e da febre amarela são uma boa maneira de prevenir problemas. Época: Mês de Junho. Festival de Parintins: 28, 29 e 30 de Junho.Clima: Quente e húmido. Pancadas de chuva e trovoadas esporádicas.Moeda: real

ONDE FICAR

Manaus: 
Hotel Tropical. No hotel pode reservar a viagem de barco para Parintins.
Parintins: 
A melhor opção é usar como hospedagem o barco que serviu de transporte para a ilha. Há para todos os gostos e para todas as bolsas.

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