domingo, 24 de abril de 2011

O canto que clareia




Na literatura brasileira, o amazonense Thiago de Mello tem o direito de ser chamado de ícone. Se se tratasse de personagem forjado no universo da cultura pop contemporânea, é claro que ele seria uma celebridade cujo rosto estaria sempre na mídia. Mas Thiago é de um outro tempo. De um tempo em que valores, virtudes e fé inabaláveis no comprometimento pessoal em favor da coletividade e da qualidade estavam acima de tudo; eram cumpridos à risca, e com indispensável discrição.



Aos 85 anos, completados no dia 30 de março, o escritor só não é realmente presença constante nos palcos porque, por um desejo seu, prefere se manter a alguma distância do burburinho. Vive na mesma cidade onde nasceu, Barreirinha, de 50 mil habitantes, situada a 330 quilômetros da capital, Manaus, e reside em comunidade ribeirinha, às margens do Rio Andirá. Desse ambiente, ainda jovem, saiu para estudar e ganhou o mundo. O dom límpido da poesia tornou-o íntimo de intelectuais e artistas e, vivificando as lembranças e a cultura da Amazônia, transformou-se em porta-voz dos anseios e das esperanças dos povos da floresta.



Durante a ditadura, seu engajamento social e seu tom de protesto o levaram à prisão. Quando foi solto, buscou asilo no Chile, onde acabou estabelecendo sólida amizade, dentre outros expoentes, com Pablo Neruda, prêmio Nobel de Literatura de 1973. Um traduziu a poesia do outro, e Neruda nunca poupou elogios à mestria criativa de Thiago. Do Chile, o poeta amazonense circulou por boa parte do planeta, da América à Europa.



Com a queda do regime militar nos anos 80, e quando enfim pôde retornar ao seu País, decidiu se instalar novamente em sua terra, Barreirinha, onde permanece, sintonizado com o ritmo de vida que a maior floresta tropical do planeta requer e propõe.

CONTAGEM – A distância em relação a grandes centros da cultura não significa que Thiago de Mello não esteja antenado com a realidade em sentido macro, ou menos entregue à atividade criativa. Pelo contrário. De lá, sai com frequência para atender a compromissos e chamados oriundos das mais diversas partes do Brasil e do mundo. Na semana passada, por exemplo, esteve em Lima, no Peru, para ser homenageado por sua tradução da poesia completa de Cesar Vallejo para o português. E também de lá, no segundo semestre, sairá para visitar o Rio Grande do Sul.



Ainda em novembro do ano passado, Thiago aceitou convite para ser o patrono da 24ª Feira do Livro de Santa Cruz do Sul, que ocorre de 27 de agosto a 4 de setembro de 2011. Assim, um dos maiores expoentes da poesia brasileira, autor de obras magistrais como Os estatutos do homem e Faz escuro mas eu canto, foi confirmado como a grande estrela desse evento, dedicado ao estímulo à leitura e à reflexão sobre o papel que a literatura e os livros podem cumprir na sociedade.



Por conta dessa perspectiva, ainda desde o final de 2010, uma periódica troca de e-mails entre Santa Cruz do Sul e Barreirinha foi dando formato a uma entrevista exclusiva que o poeta gentilmente aceitara conceder ao Magazine, em ritmo de respostas que obedecesse à sua agenda. Definiu-se que cinco ou seis questões genéricas orientariam o escritor em uma reflexão sobre sua vida e sua obra, a ser então compartilhada com os leitores gaúchos.



Finalmente, no início de março, o conteúdo integral foi enviado pelo poeta. É uma formidável contribuição, em que Thiago, em tom revelador, resgata passagens de sua trajetória, analisa o papel da poesia em seu cotidiano e, especialmente, compartilha sua expectativa de conhecer Santa Cruz do Sul.



Está aqui o autor de Os estatutos... mostrando que, em pessoa, é um estatuto de vida, de memória e de cultura raras. Diante disso, nada mais resta a fazer senão convidar o leitor do Magazine a apreciar a riqueza do depoimento de Thiago de Mello. Aliás, há, sim, uma coisa a mais a fazer: sugerir, com toda ênfase, que, concluída a entrevista, o leitor prossiga imediatamente, sem falta, com a leitura da obra do próprio poeta. E essa é para ler, reler e manter sempre à mão. Faz bem ao coração.


Vire a página e... com vocês, Thiago de Mello.


"Poesia é mais que simples vocação literária"


Magazine – Como a poesia se faz presente em seu cotidiano na atualidade e como ela costuma se manifestar? O senhor tem escrito com alguma frequência?



Thiago de Mello – A poesia me deu sinal de vida quando eu era adolescente e nunca mais me abandonou. Faz parte da minha vida. Ninguém se faz poeta. Ela é um dom. De nascença. Com a paixão da leitura e bom de gramática, se pode chegar a prosador: ensaísta, jornalista, ficcionista. Pode até cometer uns sonetos sem pés quebrados. Verdade que a poesia sempre viaja nas imagens do grande romance.



Poesia é mais que simples vocação literária. Preciso dela, quando sinto e sei que só com a linguagem poética sou capaz de expressar o que sinto, tenho precisão de dizer o que penso. Quando um lance da vida me comove. Um assombro, uma descoberta, uma indignação. Ou é a memória que pede o verso, a imaginação que instiga. Muita vez, contudo, ela me exige, me chama. E me entrega um verso, pode ser um decassílabo, uma redondilha, com os acentos nas sílabas certas. A metáfora nem pede o trabalho da inteligência.



Escrevo o poema à mão. Em caderno, que parece de um principiante, tanto eu retoco, retrabalho cada verso, trato de encontrar a palavra exata. Quando levo o poema para o computador e ele ganha aparência de coisa pronta, é quando melhor posso lhe dar a forma final de arte. Para o poeta moço que me lê, advirto que poesia é o dom e depois  trabalho, trabalho e trabalho. A imaginação, o poder de invenção, voa mais alto quando servida por um indispensável conhecimento do idioma, com o devido respeito às suas leis, regras e tendências. A linguagem é a matéria-prima da literatura e alcança o seu esplendor não na frase feliz mas na metáfora perfeita.


Escrevo, quero dizer, trabalho constantemente (é a minha profissão) em prosa ou verso... E leio poesia todo santo dia. Quando viajo (viajo muito) levo sempre comigo um dos meus poetas. Pode ser o Bandeira ou o Quevedo, o Lorca  ou o Drummond, o Joaquim Cardozo ou o Neruda, o  Borges ou o Paulo Mendes Campos, o Carlos Pena Filho, o cubano Guillén. De vez em quando, é o livro de um pardal novo que acaba de me chegar. Varo uma vereda da floresta dizendo versos em voz alta (as crianças já se acostumaram). O epílogo do Y-Juca-Pirama, a primeira estrofe do The hollow men, do T. S. Eliot; a Última canção do beco, do Bandeira. Anoitece na floresta, debruçado no parapeito de mogno da casa que o querido Lucio Costa inventou para mim, digo, olhando as águas do meu rio: O que importa é ter os olhos enxutos e a intenção de madrugar. A poesia gosta de mim, chega quando eu mais preciso.



Vou fazer uma revelação: quando consegui um salvo-contudo e saí do inferno do Pinochet, em 73, assim que o avião ganhou altura de cruzeiro, me levantei da poltrona e, sem pensar, disse em voz alta o Soneto do verão do amazonense Luiz Bacelar.

Magazine – O longo exílio acabou sendo marcado por uma grande amizade com Pablo Neruda. Que lembranças o senhor tem hoje daquele período?



Thiago – Já disse mais de uma vez que frequentar a intimidade de Pablo Neruda e merecer a ternura de sua amizade foi um dos mais belos presentes que a vida me deu. Ele criava uma atmosfera mágica ao seu redor. Sabia como ninguém inventar alegria para dar a seus amigos. Sou seu tradutor. Ele me traduziu. Recordo comovido o instante em que ele me entregou, manuscrita com sua fiel tinta verde, a tradução dos Estatutos do Homem, depois de recitá-la em frente ao Pacífico. Neruda me lavou para sempre do hermetismo na linguagem poética.



Contudo, não foi a nossa amizade que, como você diz, acabou sendo a marca do meu exílio. Primeiro porque minha inesquecível convivência com o grande bardo floresceu no tempo em que fui adido cultural da Embaixada do Brasil em Santiago, até 65. Quando voltei ao Chile, como refugiado político, nos anos 70, e servi ao governo de mi hermano Salvador Allende, o poeta vivia na França como Embaixador do seu país. Clandestino, revi o meu amigo pela última vez na sua casa da Isla Negra: já estava com a máscara da morte no rosto e me deu uma única palavra: – Compañerito... Ele retribuiu o carinho do diminutivo Paulinho, como sempre o chamei.

Magazine – Como é a sua rotina em Barreirinha? Gostaria que o senhor detalhasse um pouco essa circunstância de, em sendo um autor de renome nacional e internacional, naturalmente requisitado em grandes centros, conseguir manter a profunda ligação com a sua cidade natal, em plena floresta.


Thiago – Já retornei do exílio com a decisão de voltar a viver na floresta onde nasci. Foi na Alemanha que me decidi. Já me dedicava à defesa da sua preservação, estudava e escrevia. Alunos e professores da universidade sabiam mais do que eu sobre quantidade de hectares desmatados, incêndios criminosos. Mas para mim, a preservação da floresta só tem sentido com a elevação da qualidade da vida do seu povo. E, contra a opinião da maioria dos meus companheiros, editores, vim morar em Barreirinha, o município onde nasci. Não vim ensinar, mas aprender.



Hoje, vivo numa pequena e pobre comunidade, chamada Freguesia, banhada pelo Rio Andirá, o mais belo rio de todos os que conheço, só não é mar porque não quer. Tenho o foro de um lugar chamado Ponta da Gaivota. Moro numa casa que Lucio Costa inventou para mim, da qual fui mestre de obras. Ventos, árvores, nuvens e pássaros já me conhecem. Barreirinha é o único lugar da Amazônia onde há casas projetadas pelo gênio de Lucio, o meu amigo sábio e bom. Está nos cuidados do Patrimônio Histórico o tombamento do bloco principal, o Porantim do Bom Socorro.



Aqui não há automóveis, nem motocicletas. Só o rumor conversado dos ventos com as palmeiras e as acapuranas. Os meus livros, meus quadros, os meus mortos amados saem das fotos nas paredes e vêm viver comigo um tempo que não se acaba. É quando vibra de leve o silêncio sonoro da mata. Não posso dizer que vivo em paz, porque me sei rodeado de crianças que dormem com fome.
Daqui só saio quando me chamam para trabalhar. De tudo quanto é canto do Brasil e do mundo. Gosto de Feira de Livro em municípios pobres. Mas lá vou eu voando para Europa, África, Estados Unidos, Japão, Índia. Como demora a chegar! Mas dá vontade de ficar, aprendendo a história do homem  quando ainda nem existíamos.



Acordo muito cedo. Tomo meu guaraná ou o mirantã em pó, em jejum, nado no rio quando é tempo da cheia, atendo algum doente, sempre tenho medicamentos (estudei medicina, tive muita prática hospitalar e aqui não tem nem posto de saúde, o hospital só lá na sede municipal). Leio, já releio mais que leio, estudo e trabalho. Aqui já escrevi mais de dez livros.

Magazine – O senhor costuma estar em contato com seus pares, escritores, de outras regiões do Brasil, ou mesmo da região Norte? E de fora do Brasil? 



Thiago – Contactos? Não vivo escondido. O diálogo, mesmo a distância, é fonte de conhecimento, aprendizagem de vida. Padeço da inquietação social. As imperdoáveis, inaceitáveis diferenças sociais acendem minha indignação moral. Respondo assíduo a toda carta. Comento com rigor os originais que me chegam, prosa ou verso. Não me canso de aprender com os caboclos ribeirinhos. E ouço com respeito quando um sábio, como o velho Coracy, me diz convicto:



– Esta floresta acaba lá nada, aqui tem é mata já demais. E Deus é grande.



É verdade que na seca danada do Andirá do ano passado e dos vendavais e trovoadas que não cessavam, o patriarca Feliz me ponderou gravemente:



– É, o céu eu acho que se zangou com a gente !



Em congressos no exterior, trato de ouvir mais os escritores e poetas moços do que os consagrados. Pergunto muito. Abraço com ternura os poetas meus companheiros de geração.

Magazine - O senhor costuma ser referido, em geral, no cenário da literatura brasileira, como o "poeta da floresta". Como é dar voz, em termos de percepção e de identidade, a esse verdadeiro santuário e a essa reserva de surpresas que é a Amazônia?
Thiago – É verdade. Trato de colocar a minha arte a serviço da vida. Para servir ao que serve a pena e o preço do amor. Por isso escrevo, agora já não simplesmente pela preservação, mas pela salvação da floresta ameaçada. O que significa salvar a vida de 25 milhões de pessoas que vivem nela e vivem dela. Tenho vários livros publicados sobre a vida no Amazonas. Até em mais de um idioma. Creio que o mais importante é o Amazonas, pátria da água; conta a aventura humana, o índio e o caboclo, servo e senhor do reino das águas. É meu dever, como habitante do planeta onde moramos. Sou filho da floresta, a água e a madeira viajam na luz dos meus olhos.

Magazine – Por fim, como o senhor recebeu o convite para ser patrono da 24ª Feira do Livro de Santa Cruz do Sul?
Thiago – Recebi contente porque acho que, em Santa Cruz do Sul, tem gente que gosta de mim. Como contente atendi ao chamado de Santa Maria para fazer parte, quando voltei do exílio, de uma Feira de Livro que me foi como um presente do Brasil. Vou com a mesma alegria que senti quando José Condé e Eneida de Moraes, nos anos 50, me incluíram numa comitiva, liderada por Peregrino Junior, então presidente da Academia de Letras, eu um menino de apenas um livro publicado, para representar o Rio de Janeiro num memorável Encontro de Escritores promovido em Caxias do Sul pelo seu jovem prefeito Pedro Simon. E também, não posso deixar de contar, porque foi lá que encontrei a estudante Ítala Nandi, que cresceu para ser bela mulher guerreira, extraordinária atriz, pessoa cheia de luz.

Espero que os orgnizadores da Feira criem um tempo para que eu ouça os moços de Santa Cruz do Sul. Moços de qualquer idade. Faço muita diferença entre mocidade e juventude. Tenho encontrado muita gente moça que está envelhecendo, que não tem a esperança de um Brasil mais limpo, mais justo. Quero estar com meus companheiros de juventude de Santa Cruz, terra deste Sul que me deu Simões Lopes Neto, Erico Verissimo e o Luis Fernando também, Josué Guimarães, Moacyr Scliar, Quintana, Martha Medeiros, o Carlos Nejar, a Maria Carpi e o Carpinejar (pai, mãe e filho poetas, cada qual com asas e cantos diferentes).


Fonte: http://www.gaz.com.br




Nenhum comentário:

Postar um comentário